revisão crítica e redução para piano [2005]:
Luís Carvalho
"4.e Concerto pour la Clarinette avec Acc.t de grand Orchestre”
Duração aproximada: 14 min. [3+3+8].
Orquestra: 2 fl./2 ob./2 cl./2 fag./2 trpa./2 trpt./1 trbn./timp./cordas
PREFÁCIO
O mais curto dos concertos canongianos, o “Concerto nº4” é, pode dizer-se, quase um Concertino, pois, com menos de um quarto de hora de duração e com um primeiro andamento que não é mais do que um breve prelúdio (tradicionalmente é o andamento mais elaborado), este derradeiro concerto de Canongia fica com certeza, pelo menos em termos formais, bastante aquém dos outros, especialmente os Primeiro e Terceiro. Em termos temáticos, porém, é bastante original, misturando convincentemente parte do lirismo italiano com formalismo alemão, duas das marcas do estilo canongiano. Temos então que é como que a súmula da produção musical do autor, ainda que de modo deveras condensado.
O Allegro agitato inicial, conforme referido, funciona basicamente como um prelúdio. Na realidade os dois andamentos seguintes (Adagio e Allegro) quase se poderiam considerar um grande andamento em forma “Introdução e Allegro”, tal é a atracção tonal entre o final do segundo e o início do terceiro. Este tipo de peças (“Introdução e Allegro”) é tipicamente romântica, e não sendo linear que tal tenha sido a intenção de José Avelino, a verdade é que a proximidade é considerável. Assim teríamos o Allegro agitato como prelúdio para esse grande andamento ele próprio com uma introdução lenta.
Este primeiro andamento é absolutamente monotemático, sendo que a parte solista é mesmo quase exclusivamente baseada num único motivo rítmico: três colcheias em anacruse para duas outras colcheias ligadas, que repousam finalmente numa semínima pontuada. Ora em movimento ascendente, ora de forma inversa, a parte do clarinete (solista) é essencialmente baseada neste ritmo, variando apenas a tonalidade e/ou a orientação da linha melódica, e num ou noutro momento ligeiramente o ritmo (cc.41/55 – motivo em oito colcheias; cc.51/52 – motivo em galopes). A forma é extremamente simples (ternária monotemática – ABA), sendo a primeira secção exclusivamente na tonalidade principal (ré menor – cc.32-58), a segunda ligeiramente modulante, quase como um mini-desenvolvimento (início em Sib Maior, progredindo até à dominante desta, Fá Maior – cc.60-76), e finalmente a terceira recapitulativa (novamente em ré menor – cc.78-94). A este brevíssimo tríptico formal antecede uma relativamente longa introdução orquestral (31 compassos, cerca de um terço da duração do andamento, e que aliás é o único momento de variedade temática), e acresce uma curta coda (cc.94-118) baseada no motivo temático dos breves interlúdios orquestrais (cc.44/45, por exemplo), e que aparece entre as diversas entradas do solista. Conclui-se o andamento com uma cadenza para o solista, que conduz a uma espécie de coral conduzindo a uma cadência suspensiva à dominante do tom relativo (Fá Maior) do tom principal, que prenuncia já o segundo andamento.
Em Fá Maior, o Adagio explana-se numa curiosa forma em desenvolvimento contínuo sem nenhuma recapitulação do material temático, exceptuando uma breve reexposição a partir do c.25 de uma sequência idêntica no c.9 com anacruse. Trata-se provavelmente de mais uma reminiscência da ópera italiana, e das serenatas virtuosas típicas do bel-canto. Inicialmente a orquestra assume um papel totalmente submisso em relação ao solo, mas a partir de c.15, e pelo menos até c.18, vários instrumentos da orquestra se juntam, alternadamente, ao clarinete solista, enunciando breves fragmentos motívicos da linha melódica principal. Retorna-se entretanto à textura inicial (melodia acompanhada), e, ainda antes de concluir o andamento, enuncia-se um breve episódio em fughatto na orquestra (cc.25-27). Todas estas pequenas variações do ambiente geral, apesar de prenunciarem possíveis desenvolvimentos secundários, acabam sempre por retornar à infalível dualidade melodia/acompanhamento. A secção tutti com que finaliza é de carácter essencialmente rítmico, e baseada unicamente num motivo pontuado (semicolcheia com ponto seguida de fusa). A variedade advém aqui essencialmente da progressão harmónica, que conduz a música do tom de Fá Maior novamente para o campo de ré menor, concluindo num acorde suspensivo de dominante (Lá maior). Ré menor será, aliás, tal como no primeiro andamento, o tom do Allegro final.
Enfim, o terceiro andamento, com quase o triplo da duração de qualquer dos seus precedentes, é sem dúvida o clímax desta obra. Numa forma ambígua que mistura laivos do bitematismo oriundos do allegro-sonata com a alternância de secções do rondó, este Allegro final demonstra um refinamento na disposição dos diversos grupos temáticos que, afinal, revela um métier de compositor bastante seguro, apesar da opinião geral de que Canongia não era compositor de grande valia (Ernesto Vieira, no seu incontornável Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes de 1900 afirma peremptoriamente que «as obras de Canongia não constituem valioso trabalho de composição» [p.202]).
Esquematicamente falando trata-se de uma forma ABAB’Acoda, que, excluindo a recapitulação (textual refira-se) da secção A antes da coda final, corresponde a uma forma binária, ou allegro-sonata sem desenvolvimento. Porém precisamente essa terceira recapitulação de A (cc.285 com anacruse a 335) transforma-o numa espécie de forma rondó, com a alternância constantemente entre refrão (invariável) e coplas (variáveis). A questão aqui é que B’, estando no lugar de uma possível secção C (nova copla opositora ao refrão), não chega propriamente a ser uma nova secção, mas antes uma recapitulação de B (ou primeira copla) numa nova tonalidade (Sib Maior). No entanto não é também uma secção de desenvolvimento (que justificaria uma forma compósita rondó-sonata), uma vez que todos os elementos temáticos de B são recapitulados textualmente, apesar de na nova tonalidade.
É todavia o retorno ao virtuosismo típico dos outros concertos a característica que mais sobressai neste derradeiro Allegro, uma vez que, principalmente o primeiro andamento é de uma simplicidade técnica desconcertante. É certo que o ponto de cadenza para o solista nesse Allegro agitato inicial, deixado em aberto para improvisação, oferece uma oportunidade para demonstrações de virtuosismo, e que algum tipo de ornamentação será mesmo de esperar no Adagio central, mas efectivamente apenas o último andamento parece preencher o requisito romântico de apologia do virtuosismo.
Assim este “Concerto nº4” parece encravado entre as duas épocas em que viveu Canongia, o Classicismo do final do séc. XVIII e o Romantismo do início do séc. XIX.