Figlia del Regimento: Fantasia
O manuscrito desta obra encontra-se na área de Música da Biblioteca Nacional. Trata-se um manuscrito em boas condições de conservação e leitura que apresenta, por vezes, emendas e algumas páginas com colagens. Só foi possível encontrar uma única fonte desta obra, sendo a sua cota “Figlia del Regimento: Fantasia” C.N.547. Só foi encontrada a parte geral (piano e violino). O facto de só existir uma fonte apresenta alguns problemas que são necessários ultrapassar no sentido de se conseguir realizar uma edição coerente e exequível. Os maiores problemas encontrados estão relacionados com: dinâmicas; articulações; métrica. No manuscrito com a parte geral, as indicações de dinâmica aparecem, salvo raríssimas exceções, apenas na parte de piano. Optou-se por aplicar à parte de violino solo as mesmas indicações de dinâmica que aparecem na parte de acompanhamento. Excecionalmente, foram alteradas e acrescentadas indicações de dinâmica que seguem a linha melódica do violino, sendo, neste caso, claramente uma abordagem pessoal. Ao nível da articulação, a escrita apresenta inúmeras inconsistências no que diz respeito ao uso de ligaduras. Em primeiro lugar, nalgumas frases, o tipo de escrita não nos permite perceber exatamente onde começa, ou acaba, a ligadura. Por vezes, em frases ou figuração repetidas, a articulação não é sempre igual, deixando-nos a dúvida da verdadeira intenção do compositor. Isto é, se se pretende que haja contrastes na articulação ou se apenas, como era prática corrente, assumir que a articulação, uma vez apresentada numa frase, se deveria manter inalterada até ao fim. No que diz respeito à métrica, surgiram questões em que houve necessidade de alterar o ritmo escrito para manter o número de tempos do compasso estabelecido. Outro tipo de problema encontrado, que neste caso tem mais a ver com a execução das obras, prende-se com a escassez de indicação de dedilhações, apesar de, ocasionalmente surgirem apontamento sobre a corda em que se deve tocar determinada nota ou passagem. Os harmónicos estão indicados com o número zero e, por vezes, também com a palavra “harmónicos”, escrita por cima da passagem a realizar, não indicando como deveriam soar, uma oitava acima, ou duas ou a nota real. As indicações de tempo colocadas pelo compositor são respeitadas, tendo sido acrescentados alguns ralentandos para criar alguma ênfase em determinados finais de frase. A linha melódica do violino sugere, com a sua escrita, um carácter específico em cada tema, por exemplo, lírico ou, em contraste, virtuosístico. A parte de piano é baseada numa escrita simples e destina-se, claramente, apenas ao acompanhamento do solista, não tendo nenhum momento de relevo ou de grande importância no discurso musical. Os poucos momentos em que o piano se encontra a solo são os inícios das peças e em pontes criadas na mudança de tema ou variação. Em dinâmicas mais intensas, a parte de piano é composta por oitavas, não em todos os casos, para dar a sensação de preenchimento, e em dinâmicas menos intensas as melodias tornam-se muito simples, em comparação com a parte de violino que é extremamente virtuosística.
A “Figlia del Regimento: Fantasia” foi baseada na ópera cómica “Figlia del Regimento” de Gaetano Donizetti em dois atos. Desta obra, Noronha utiliza para a sua Fantasia duas árias e a introdução ao segundo ato. Os primeiros temas introdutórios do piano e do violino são da autoria do compositor. Este início dá uma boa introdução aos temas da ópera, visto que Noronha utiliza um estilo semelhante, num carácter lírico, com uma sequência de apresentação de temas que vão do mais lento ao mais rápido culminando numa cadência sobre a nota Lá que faz a ponte para o primeiro tema da ópera. O primeiro tema baseado na ópera surge no compasso 37 e é retirado da introdução do segundo ato da ópera, o “Tirolese”. Este tema é muito simples e Noronha transportou-o particamente igual para a sua obra. A melodia original do “Tirolese” tem duas partes. No entanto, Noronha opta por utilizar apenas a primeira, sendo que a reproduz uma segunda vez, mas em harmónicos. No compasso 75, o piano faz uma ponte para o novo tema baseado no Tempo di Marcia do Coro “Il briccone è uno spione”. O tema está numa tonalidade diferente da ópera e, tal como no caso anterior, as frases não são uma cópia exata da melodia original. Também aqui, Noronha repetiu este excerto duas vezes, sendo que no final da segunda vez cria uma ponte, baseada nos elementos musicais anteriores, para duas variações sobre o mesmo tema. “Convien partir” é a próxima ária utilizada na fantasia. Surge no compasso 148, novamente com uma introdução do piano. Tal como anteriormente, não está na mesma tonalidade da ópera e não aparece exatamente como no original. Noronha utilizou ainda mais um tema, baseado no Allegretto do dueto “Che! Voi, m’amate!” de Maria e Tonio do primeiro ato, para acabar a sua fantasia. Tal como nos outros excertos, o compositor não segue à risca o que Donizetti escreveu, optando por colorir um pouco mais a sua obra e tornando-a mais virtuosística. Esta parte encadeia com o tempo Piú Vivo acabando com uma série de acordes e uma cadência Plagal. A “Figlia del Regimento: Fantasia” é baseada em diversas melodias que, não sendo muito complexas tecnicamente, assentam num caráter lírico e expressivo, próprio do estilo operático, com rallentandos e accelarandos para expressar a emoção ou ação de cada acontecimento.
A investigação realizada sobre o compositor ajudou a perceber os obstáculos que Sá Noronha teve de ultrapassar para romper por entre as fileiras de músicos seus contemporâneos, particularmente em Portugal, para dar a conhecer a sua música. Toda a sua história parece indicar que teria um grande talento como violinista e compositor e, apesar de as suas obras para violino e piano não serem muito conhecidas na atualidade, terão tido algum impacto no seu tempo e representam uma parte da história da música portuguesa que não deve ser negligenciada. Nos dias de hoje, ainda são poucos os trabalhos que abordam este compositor na tentativa de o fazer irromper das sombras da história para a luz do dia. O material de pesquisa que se pode obter sobre ele encontra-se, em Portugal na Biblioteca Nacional. Tal facto não impede que não existam mais manuscritos, ou biografias sobre Noronha fora do País. Sabendo-se que ele viajou por uma parte do mundo, a sua música pode estar espalhada por vários países, bem como informações ainda desconhecidas sobre a sua técnica do instrumento e modo de composição. Sendo que Noronha passou grande parte da sua vida no Brasil, é provável que por lá existam mais fontes acerca do seu trabalho musical. Ao ser editada, esta obra para violino e piano visa cultivar o interesse sobre este músico ainda tão pouco conhecido, e reconhecido, na atualidade. A “Figlia del Regimento: Fantasia” poderá fazer parte do repertório violinístico português, que tem vindo a crescer cada vez mais com o passar dos tempos seja com obras de outros séculos ou obras nossas contemporâneas, e ser divulgada através de diversas interpretações.
Juliana Sousa Santos