Prefácio
Nos seus olhos voluntariosos lê-se o equilíbrio moral e mental de um grande trabalhador. O mesmo carácter franco e saudável faz o encanto da sua arte. Dir-se-ia que existe um camponês sob o músico requintado.
As suas composições estão impregnadas de um grande lirismo rural que as localiza não só portuguesas, mas portuguesas do Norte.
Este sabor congénito da rusticidade afirma-se em todas as suas obras. As suas fontes de inspiração vai buscá-las aos cenários, sentimentos e motivos da mais funda raiz portuguesa. O povo lá passa como nos "Romeiros” a caminho dos arcaicos santuários, ao som de melodias quase suas, contudo de contorno bem pessoal.
Sem recurso à música popular, há cunho popular no artista cultíssimo que fixa em quadros tão modernos a poesia desta terra antiga.
Crítica admirável publicada a 5 de junho de 1925 no jornal O Primeiro de Janeiro sobre Poemas do Monte, uma janela aberta para o ambiente rural do Portugal da década de 1920. As nuances melancólicas e bucólicas da sua pintura sonora são imediatas e absorventes.
Nas suas memórias, as filhas de Luiz Costa descrevem-nos como grande apreciador de longas caminhadas pelos campos fora. Fascinava-se com a beleza natural do Minho e o trabalho diário do campo. A maior parte das suas obras deixa transparecer estes elementos, comoDrei Klavierstücke Op.1, Telas Campesinas Op. 6, Cenários Op. 13, entre muitas outras. Poemas do Monteé um exemplonotável do lirismo bucólico de Luiz Costa.
Inspirados na sua região natal, Poemas do Montepoderão ser fruto de outro estímulo; uma obra do seu mestre José Vianna da Motta (1868–1948) de título Cenas nas Montanhas, Op. 14, composta em meados de 1890. Embora contendo elementos rústicos e pastoris, a com-posição deste mestre é para quarteto de cordas e o seu carácter, tom e linguagem musical são consideravelmente distintos daqueles apresentados neste ciclo de Luiz Costa. Contudo, a proximidade de ambos poderá ter ocasionado alguma influência.
A primeira composição a ser designada de“Poemas do Monte”denomina-se A moleirinha e remonta a 1916–7, tendo sido mais tarde revista para inclusão no ciclo Telas Campesinas, Op. 6, mas nunca publicada. Mais peças foram compostas como “Poemas do Monte”, mas acabaram em outros ciclos ou foram publicadas de forma inde-pendente. É o caso das primeiras versões de Solidão dos campos e Tarde bucólica, a primeira incluída em Telas Campesinas, a última destinada às Telas Campesinas mas nunca publicada. Canção do moleiro foi interpretada por Luiz Costa como “Poema do Monte” durante um concerto em junho de 1925, mas publicada separadamente sem essa designação na edição de Natal de 1927 do Commercio do Porto Illustrado.
No início da década de 1920, Luiz Costa dedicou-se seriamente à composição das primeiras peças que viriam mais tarde a ser compiladas como Poemas do Monte: Pelos montes fora, À beira da fonte, e uma primeira versão de Ecos dos vales. Os restantes poemas foram compostos ao longo de oito anos (1923–31), quatro dos quais foram revistos em meados da década de 1930 para publicação como Op. 3 – Pelos montes fora, Murmúrios das fontes, Ecos dos vales, eCampanários – e dedicados ao seu mestre e amigo Vianna da Motta. Este ciclo de quatro peças teria sido publicado em 1936 ou pouco depois, visto que a segunda versão de Campanários data de 1936, a revisão de Ecos dos vales de 1935, e várias revisões a Murmúrios das fontes foram feitas ao longo da década de 1930. O ímpeto de publicar nesta altura terá incentivado Costa a trabalhar nas versões definitivas destas obras. Um incentivo poderá ter sido a aparente colaboração editorial entre a Valentim de Carvalho, em Lisboa, e a C. G. Röder de Leipzig, apesar de ainda não ser claro por que Pelos montes fora foi publicado na Alemanha e as outras peças em Portugal. Luiz Costa pode ter pretendido apresentar as suas composições ao público alemão publicando com a Röder, uma mega empresa de edição musical que continuou a expandir-se e se tornou uma sociedade por ações na década de 1930.
A sua filha Madalena recorda com grande emoção as ocasiões em que a sua mãe anunciava: “Hoje, à noite, o Pai vai tocar-nos a sua última composição”.[1] A família era a sua primeira audiência, porém algumas destas magníficas obras estavam ainda em fase de composição, quando foram encontradas, pelo que terão sido ouvidas apenas pelo compositor.
A primeira apresentação pública de Poemas do Monteincluiu À beira da fonte, e uma versão anterior de Ecos dos valestocada pela mulher do compositor, Leonilda, em março de 1922 na Sociedade de Belas-Artes do Porto, ePelos montes foratocada por Luiz Costa como encorenum concerto dedicado a Beethoven em Lisboa, em fevereiro de 1923. Num programa anunciado num texto de Carlos Manuel Ramos, a 6 de junho de 1925, Luiz Costa terá tocado sete Poemas do Monte no Teatro Gil Vicente, no Porto, incluindo dois poemas aqui publicados pela primeira vez: Conduzindo o rebanhoeMalhadores na eira. Embora Costa tenha publicadoPoemas do Monteapenas com quatro peças, o seu concerto mostra que a compilação poderá ser mais extensa.
A presente edição revela a compilação inédita de todo o conjunto de doze poemas, oito dos quais nunca antes publicados. Apesar de o número de opus ter sido inicialmente dado por Costa unicamente a quatro poemas, nesta edição estende-se às restantes obras. Estas peças são apresentadas cronologicamente (ver Tabela 1). A elabo-ração da ordem nem sempre foi simples, pois em algumas peças não há registo de data e Costa realizou múltiplas revisões a outras durante um longo período de tempo. Mesmo que descobertas futuras esclareçam melhor as origens de certas obras, é improvável que a ordem geral sofra mudanças significativas. Os Poemas do Monte são extremamente versáteis: as peças podem ser tocadas individualmente, tocadas em combinações variadas ou executadas como um ciclo completo, podendo até deso-bedecer-se à ordem cronológica, como ilustra a gravação na íntegra de Artur Pereira, que inicia com Pelos montes fora, uma das primeiras peças compostas por Luiz Costa e o primeiro número da coleção de quatro peças publicada em meados da década de 1930 como Poemas do Monte. Para além do seu caráter majestoso, esta peça, idêntica a uma abertura, oferece uma sinopse das principais tona-lidades usadas ao longo do ciclo. A secção central é em fá sustenido maior, a dominante de si que é a tonalidade de Ecos dos vales, Luar nos açudes, Sobre os montes desce a paz e À beira da fonte. Nos compassos finais da secção central, há uma mudança para fá sustenido menor, mas com ênfase acentuado em ré maior (a tonalidade de Murmúrios das fontes, Névoa no vale e Ao romper d'alva em dia de festa…) e um vestígio de mi maior (proeminente em Malhadores na eira e na peça final, Campanários). Sendo mi maior a dominante de Pelos montes fora, esta tonalidade é assim realçada nas peças externas do ciclo. Por sua vez, a tonalidade de Pelos montes fora (lá menor/maior) é amplamente usada em Névoa no vale e Ao romper d’alva como dominante.
Tabela 1 Cronologia dos Poemas do Monte
Ano de composição
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Obra
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Primeira audição
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1921–1922 (início)?
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À beira da fonte
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Porto, 4 março 1922
Sociedade de Belas-Artes,
Leonilda Moreira de Sá e Costa
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1921–1922 (início)?
(revista em 1935)
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Ecos dos vales
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Ibidem
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1921–1923 (início)?
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Pelos montes fora
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Lisboa, 4 fevereiro 1923
Teatro D. Amélia, Luiz Costa
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1923 (revista inúmeras
vezes até meados de 1930)
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Murmúrios das fontes
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Porto, 6 junho 1925
Teatro Gil Vicente, Luiz Costa
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1923 (algo revista
em 1925)
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Conduzindo o rebanho
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Ibidem
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1923–1925?
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Malhadores na eira
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Ibidem
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1924–1925? (a segunda
versão data de 1936)
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Campanários
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Ibidem
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1927
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Sobre as cumeadas
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Manchester, 21 maio 2022
St Ann’s Church, Artur Pereira
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1927
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Luar nos açudes
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Ibidem
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1928
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Ao romper d’alva em dia de festa…
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Ibidem
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1931
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Névoa no vale
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Ibidem
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1931
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Sobre os montes desce a paz
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Ibidem
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Apesar da incerteza sobre a intenção de Luiz Costa em publicar todas as peças em um só volume e de a sua composição se alargar por um período de cerca de nove anos, o ciclo está extraordinariamente integrado em termos de tonalidade, estrutura e até elementos motívicos. O desenvolvimento de Malhadores da eira (dó maior), por exemplo, contém secções em mi bemol maior (usado na primeira apresentação do segundo tema de Sobre as cumeadas), ré maior, fá sustenido menor e um ponto pedal em si maior antes da recapitulação triunfante do tema inicial. Vale ainda a pena referir que o segundo tema de Malhadores na eira aparece em mi maior antes da coda, pronunciando assim a tonalidade de Campanários (que também apresenta ecos dos ritmos pontuados que caracte-rizam Malhadores). Dada a sua estreita relação com si maior, a tonalidade de Sobre as cumeadas (sol sustenido menor) aparece frequentemente em Ecos dos vales e Luar nos açudes. Os contornos melódicos e o acompanhamento de Murmúrios das fontes e À beira da fonte estão também intimamente relacionados, assim como as respetivas secções centrais em si bemol maior.
As peças do ciclo estão impregnadas de imagens bucólicas, e muitas apresentam uma quinta perfeita ascendente, evocando a trompa do caçador, o que é particularmente evidente em Pelos montes fora, Ecos dos vales, Sobre as cumeadas e Campanários. As quintas perfeitas aparecem de forma mais subtil nas várias texturas do acompanhamento, como em Murmúrios das fontes, Sobre as cumeadas, Malhadores na eira e Ao romper d’alva.
Poemas do Monte é uma viagem virtual ao norte rural de Portugal do início da década de 1920, uma viagem espiritual de contemplação dos sons e dos silêncios da natureza, pela perceção da alma tão romântica e sensível de Luiz Costa.
Notas biográficas
Luiz António Ferreira da Costa (1879–1960) foi pianista, compositor e pedagogo e uma das personalidades de maior importância na música portuguesa durante a primeira metade do século XX.
Nasceu a 25 de setembro de 1879 em S. Pedro de Fralães, no Minho, região que teve nele uma profunda influência e lhe serviu de grande fonte de inspiração. Tendo estudado no Porto com Bernardo Moreira de Sá, em Munique com Bernhard Stavenhagen e em Berlim com José Vianna da Motta, Conrad Ansorge e Ferruccio Busoni, Luiz Costa dedicou a maior parte do tempo a dar aulas particulares de piano no seu estúdio e no Conservatório de Música do Porto, do qual foi diretor em 1933–4. Manteve, mesmo assim, uma carreira concertística ativa, como solista e músico de câmara, em colaboração com Pablo Casals, Guilhermina Suggia, Alfred Cortot e George Enesco, entre outros. Após um recital com a violoncelista Guilhermina Suggia no Wigmore Hall em Londres, os críticos britânicos foram unânimes nos elogios que teceram ao virtuoso português.
Em 1924 Luiz Costa assumiu o cargo de diretor do Orpheon Portuense,que, graças ao seu esforço, recebeu grandes personalidades como Ravel, Arrau, Backhaus, Landowska, Fischer, entre muitas outras. Iniciou também uma série de concertos temáticos em Portugal dedicados às obras musicais de grandes mestres, notavelmente Beethoven, por quem tinha a maior admiração e a cujas obras dedicou dezenas de recitais. Costa foi também o primeiro a tocar em Portugal o Primeiro Concerto para piano de Tchaikovsky, num concerto em Lisboa, sob direção de Pedro Blanch.
Luiz Costa foi um compositor prolífico, compondo especialmente para piano e música de câmara. Apesar de influências da tradição germânica e do impressionismo francês, a sua obra apresenta um estilo único, com uma linguagem pessoal, refletindo fervor nacionalista e carinho pelas paisagens naturais da sua terra natal.
Artur Pereira
Manchester, agosto 2022
[1]Costa, Madalena Moreira de Sá e, Memórias e Recordações (Vila Nova de Gaia: Edições Gailivro, 2008), p. 10.