Introdução
Natural da Freguesia da Ajuda, em Lisboa, Jerónimo Francisco de Lima (1741?, 43?-1822), após estudos no Seminário da Patriarcal, onde entrou com dez anos por já saber alguma couza de muzica, segundo o livro de assentos desta instituição, estudou em Nápoles, para onde foi enviado por ordem de D. José I, em finais de 1760. No ano de 1798 sucedeu a João de Sousa Carvalho no cargo de Mestre de Capela do Seminário da Patriarcal, embora já em 1785 o libreto de La Vera Costanza o identificasse como primo Maestro di Cappella del Real Seminario di Lisbona. Parte do que se sabe a seu respeito advem do facto de ter sido músico privado de William Beckford durante o ano de 1787, quando da estada em Portugal deste excêntrico melómano britânico, autor de um detalhado diário. Para além de música sacra e de algumas modinhas, compôs bastante repertório dramático-musical profano, no que se incluem as quatro obras das quais agora se publica as aberturas, destinado ao entertenimento da corte.
Nápoles não só era então uma capital da ópera, como se caracterizava, no cenário italiano de então, segundo o pioneiro historiógrafo da música Charles Burney, por um particular desvêlo na composição da sua componente instrumental, que chegava em alguns casos a melhor reflectir a trama e os estados psicológicos das personagens do que as próprias partes dos cantores. Este terá sido o ambiente em que Jerónimo Francisco de Lima formou a sua lide instrumental, certamente também marcada pela actividade de cravista, piano-fortista e organista, segundo o testemunho de Beckford, versado em diversos géneros de Música de Câmara. Nas óperas de Lima as passagens instrumentais são elaboras, indo bastante além do simples acompanhamento do canto, com um tratamento motívico muito consequente e grande requinte na escrita de detalhes de articulação e dinâmica. A atenta diferenciação entre a escrita de notas com bandeirolas independentes ou unidas por barras, a título de exemplo, demonstra quão detalhista era este compositor.
Estas são as quatro aberturas de Lima com instrumentação mais simples: sem flautas e com um só fagote. Há nos libretos duas referências ao uso destas aberturas como música de cena: No início do 3º andamento da Abertura de Enea in Tracia chegavam à praia os guerreiros troianos que acompanhavam Eneas, vindos do mar; no último andamento da abertura de La Vera Costanza já o público via a tempestade marítima e os apuros por que passava o barco onde se encontravam grande parte das personagens. O primeiro andamento de Lo spirito di contradizzione parece ilustrar musicalmente cada uma das principais personagens da ópera: A Condessa, que reage sempre ao contrário do que se esperaria, no movimento divergente dos violinos, compassos 4 e 5; O Governador, com o seu corrompido latim, espelhado nos erros de quadratura com que na reexposição aparece a fanfarra dos clarins, ouvida pela primeira vez nos compassos 12 e 13, e D. Cesarino, o impostor que convence várias noivas da seriedade das suas intenções, seja nos motivos apaixonados que são ouvidos pela primeira vez nos compassos 25-30, seja na marotice dos compassos 33-38.
Se, por um lado, é inequívoca a relação entre estas aberturas e as óperas que iniciam, com muitas citações recíprocas, não se lhes pode negar o valor enquanto peças independentes, podendo estas vir assim a aumentar o repertório português do século XVIII disponível, particularmente escasso em obras para orquestra que envolvam sopros.
Tomando por modelo a forma como Haydn - o mais célebre compositor do tempo de Lima - transformou algumas das suas aberturas de ópera para as tornar peças orquestrais independentes, alterou este editor o final da abertura de La Vera Costanza, que na versão original segue directamente para a primeira aria, na distante tonalidade de Mi bemol Maior, dando-lhe uma reprise que a fecha na tonalidade inicial de Dó Maior. A abrangência desta intervenção aparece claramente sinalizada, assim como se mantém presente o final original.
A Real Camara, orquestra de excelência para a qual Lima escreveu estas obras, sobre a qual é referência fundamental o excelente livro de Joseph Scherpereel, teve um número de integrantes variável: eram 31 em 1762, 51 em 1785, declinando a partir daí o seu número. Tudo indica que os sopros eram tocados a um por parte, como actualmente, sendo aconselhável que o actual intérprete encontre um bom equilíbrio entre estes e o conjunto das cordas.
Esperamos com esta edição prática contribuir para uma maior presença de Jerónimo Francisco de Lima nas salas de concerto do século XXI, pois a sua escrita instrumental é cuidadosa e expressiva, merecendo a nossa atenção.
Metodologia editorial
Muito embora esta seja uma edição prática, tentou-se nela manter características notacionais que pudessem reflectir vontades do compositor que eventualmente manifestassem as suas características estilísticas, sempre que não prejudicassem a leitura fluente do músico actual. Nisto se incluem a disposição dos instrumentos na partitura, que nas obras de Lima não é sempre igual, ainda que pela mão de um mesmo copista – o que parece indicar uma vontade do compositor - e a transposição, ou não, das trompas e dos clarins. Em todos estes pontos se optou na partitura pela imagem original, uma vez que Lima era muito consciencioso e subtilmente diferenciado na sua escrita, como se reconhece no Te Deum autógrafo que dele guarda a Biblioteca Nacional de Portugal, verificando-se este mesmo rigor no trabalho dos copistas das suas óperas.
As partes separadas dos instrumentos transpositores são aqui editadas respeitando a notação original, que ora é transposta, em clave de sol, ora não o é, em clave de fá. É importante que o trompista tenha consciência de que, sempre que a sua parte estiver notada em clave de fá, deverá soar 8ª acima do que indica a notação, realizando ainda, claro, a transposição necessária.
Tanto na partitura como nas partes as intervenções do editor são facilmente identificáveis pelo enquadramento em parênteses rectos ou por indicações em nota de rodapé, de maneira que o intérprete saiba sempre qual era a informação da fonte, adoptando, ou não, a opção proposta. As sugestões editorias reduzem-se ao mínimo necessário para o uso prático do material, tendo-se baseado, tanto quanto possível, no conhecimento da restante obra deste compositor e das convenções que lhe são características. Como excepção à norma, escreve-se por extenso todas as passagens em que o copista apenas avisa o uníssono ou a oitava com um outro instrumento, sem que estas passagens apareçam sinalizadas.
As partituras a partir das quais foi elaborada esta edição conservam-se em excelente estado, todas na Biblioteca da Ajuda, à qual se agradece pela autorização de publicação e pela simpatia com que este editor foi sempre recebido. Eis as suas cotas:
Lo Spirito di Contradizzione 48-II-10
Enea in Tracia 48-I-32
Teseo 48-II-6
La Vera Costanza 48-II-8
Vasco Negreiros
29 de Outubro de 2012