Prefácio
Terminada a sua composição em Julho de 1905, a Balada sobre duas melodias portuguesas, op. 16 de José Vianna da Motta, também conhecida por Balada, op. 16 ou Ballada, op. 16 (conforme a ortografia vigente na época), foi publicada pela primeira vez na editora Moreira de Sá nesse mesmo ano e reimpressa em 1957 pela editora Sassetti & C.a. Assim, e por ser provável que Vianna da Motta tenha intervindo na edição da sua obra, a edição da Moreira de Sá será denominada edição original. Essa edição difere ligeiramente do manuscrito. Na edição que apresentamos, introduziram-se colchetes, ossias e notas de rodapé para assinalar os elementos presentes na edição original e ausentes do manuscrito. À semelhança do que acontece na edição original, todas as dedilhações apresentadas nesta edição são sugestões do compositor.
Como o título indica, a Balada sobre duas melodias portuguesas, op. 16 é construída em torno de dois temas. O tema “Tricana d'aldeia” (c. 1-20) é originário de Coimbra, extremamente popularizado em Vila Real e na ilha de São Miguel. Foi, provavelmente, a partir da recolha de João António Ribas, feita em Vila Real de Trás-os-Montes e publicada no Álbum de Músicas Nacionais Portuguesas, que alguns compositores do século dezanove se orientaram quando decidiram empregar este tema nas suas obras (ver a primeira obra do ciclo Três rapsódias sobre motivos populares portugueses de Victor Hussla). É através de um trabalho temático baseado em variações que Vianna da Motta realça o carácter popular deste tema (c. 1-170). Essas variações resultam de um processo de desenvolvimento temático tipicamente lisztiano incidindo, essencialmente, sobre a decoração da melodia. O tema “Avé-Maria” (c. 175) não sofre o mesmo tipo de trabalho temático – possivelmente devido à sua dimensão religiosa – mas também nele se evidencia a marca de Franz Liszt. Com efeito, a associação da tonalidade de fá sustenido maior a passagens de carácter religioso está fortemente presente no repertório do pianista e compositor húngaro (ver “Après une Lecture de Dante”, S. 161 ou “Bénédiction de Dieu dans la solitude”, S. 173). Esta melodia foi publicada no segundo volume do Cancioneiro de Músicas Populares a partir da recolha feita por Henrique das Neves na ilha de São Miguel. Segundo o seu relato, este tema era cantado em coro pelos micaelenses em situações de calamidade pública para obter a misericórdia de Deus. Sobre a expressão musical do tema, – não sendo necessariamente aquela de Vianna da Motta pretendia evocar – Henrique das Neves exprime-se da seguinte forma:
“notei nele […] a angustia que implora, o grito aflitivo de quem suplica misericórdia, de quem roga que o salvem. Não será verdadeira interpretação [uma] suave e doce oração, será antes um brado dos filhos de Eva, que gemem e choram neste vale de lágrimas, enviado à sua advogada” (in Cancioneiro de músicas populares, vol. 2).
Não é a primeira vez que Vianna da Motta se inspira de um tema de carácter popular e outro de carácter religioso na construção de uma obra musical. Veja-se a sua 4ª Rapsódia Portuguesa para piano, intitulada “Oração da tarde”, onde são empregues os temas “Ai que lindos amores que eu tenho” e “Ao menino Deus”. Apesar de não existirem certezas relativamente à origem dos temas religiosos mencionados, é legítimo considerar que Vianna da Motta manifesta deliberadamente, nas duas obras, a intenção de cruzar os universos popular e religioso.
São múltiplas as influências presentes na Balada sobre duas melodias portuguesas, op. 16 de José Vianna da Motta. Apenas um estudo aprofundado permitiria revelar inequivocamente todas as suas fontes de inspiração. Em José Vianna da Motta: 50 anos depois da sua morte, Teresa Cascudo sugere algumas dessas fontes:
“Vianna da Motta compô[s] [a sua balada] quando preparava uma série de programas nos quais integrou outras obras afins tais como as duas rapsódias op. 79 de Brahms, a Balada sobre uma romanza norueguesa de Grieg [op. 24] e a Balada nº 2 de Liszt.”
Manifestamente, a forma em variações da Balada, op. 24 de Edvard Grieg terá influenciado a estrutura da balada de Vianna da Motta. A marca das Rapsódias, op. 79 de Johannes Brahms é bastante menos evidente. É, contudo, possível descobrir algumas semelhanças, como por exemplo entre os compassos 109 a 112 da Balada sobre duas melodias portuguesas, op. 16 de Vianna da Motta e os compassos 125 a 129 da Rapsódia, op. 79 nº1 de Brahms
Em ambos os casos, são encadeadas, abruptamente, a tonalidade homónima da tonalidade principal – con pedale – e a tonalidade principal – senza pedale – momentos antes de uma súbita mudança do carácter musical. No que respeita a influência que a Balada nº 2, S. 171 de Franz Liszt terá tido sobre a Balada sobre duas melodias portuguesas, op. 16, convém salientar que Vianna da Motta tinha interpretado esta obra em público já em 1887, pelo que é natural que ela o tenha marcado profundamente. É, sobretudo, a partir do Tempo I do compasso 136 que as marcas da escrita lisztiana são mais notórias. O tremolo do#–si# escrito con pedale sob a dinâmica pianissimo nos graves do piano (all'ottava bassa) e os fragmentos do tema “Tricana d'aldeia” presentes nas notas agudas dos acordes distantes resultam numa atmosfera musical bastante similar à que Liszt produz na introdução da sua Balada nº 2, S. 171.
Perante o sucesso que a obra tinha no início do século vinte, a balada de Vianna da Motta foi, progressivamente, integrando os programas dos seus concertos tomando o lugar da sua 1ª Rapsódia Portuguesa que durante catorze anos representou a grande obra romântica da sua autoria. Presentemente, a Balada sobre duas melodias portuguesas, op. 16 é, talvez, a obra para piano de Vianna da Motta mais disseminada e mais vezes interpretada. Ela consta na discografia de pianistas como José Sequeira Costa, Artur Pizarro ou António Rosado.
João Costa Ferreira