Carlos Seixas (1704-1742)
José António Carlos de Seixas nasceu em Coimbra a 11 de Junho de 1704. Iniciou os estudos musicais com seu pai Francisco Vaz, tendo adquirido desde muito novo uma apreciável destreza no órgão.
Aos 14 anos substitui o pai nas funções de organista da Sé de Coimbra e, dois anos mais tarde parte para Lisboa onde chega já com grande fama.
Precedido de uma sólida reputação, foi admitido como organista na Santa Basílica Patriarcal de Lisboa e na Capela Real. Para além destas funções, compunha e ensinava cravo nas casas da corte.
Ao contrário dos seus contemporâneos Francisco António de Almeida, António Teixeira e João Rodrigues Esteves, que foram bolseiros da coroa portuguesa em Roma entre 1716 e 1728, Seixas parece nunca ter saído de Portugal, tendo-se formado muito provavelmente na escola de seu pai, herdeira da tradição organística ibérica do século XVII.
Embora Seixas tenha tido uma curta existência, morreu com apenas 38 anos, e se bem que uma grande parte da sua música tenha desaparecido aquando do terramoto de 1755, o pouco que nos chegou, apresenta-o como um compositor cheio de génio, digno representante da escola portuguesa.
Seixas foi sem dúvida o mais proeminente compositor português de música para tecla da primeira metade do século XVIII, tendo composto, segundo testemunhos da época cerca de 700 Toccatas ou Sonatas. No entanto só cerca de uma centena chegaram até aos nossos dias.
Carlos Seixas atribui indiferentemente o título de Toccata ou Sonata às peças para tecla, sendo certo que nas suas obras estes dois títulos significam rigorosamente a mesma coisa, ou seja e antes de mais, são peças para se tocarem no cravo, clavicórdio ou órgão, e com relativamente poucas excepções têm a mesma forma da Sonata bipartida dos seus contemporâneos italianos e espanhóis.
Bastante interessantes também são as suas composições para tecla lembrando a forma da Suite, como por exemplo Toccatas com Minuetes, Gigas, ou outros andamentos.
É também de salientar a insistência de Seixas no Minuete (dança de origem popular em compasso ternário tranquilo, que se tornou a partir de 1650 a dança cortesã predilecta de Luís XIV). Esta preferência pelo Minuete ultrapassa tudo quanto a esta dança se fez no seu tempo, nomeadamente pelos seus contemporâneos portugueses, espanhóis e italianos.
Seixas demonstra em algumas Sonatas uma técnica plenamente desenvolvida e exigente. No entanto a sua inspiração é mais forte no domínio da invenção melódica, em especial nos andamentos lentos e em alguns minuetes, onde encontramos verdadeiramente a alma portuguesa, a saudade, a ternura e sobretudo uma grande simplicidade. Atributos estes que levam à formação de uma escola portuguesa definida, que se distingue das outras precisamente na sua forma de expressão.
A propósito desta questão da alma portuguesa na música de Seixas, Santiago Kastner no livro que escreveu sobre este compositor diz o seguinte:
“Na sua individualidade e original disposição psíquica reside um dos maiores encantos da música de Seixas. É essa alma poética e dedicada que imprime a esta arte o cunho do “estilo Português”. (…)”Como qualidades apontaremos a sobriedade, a compreensão imediata do discurso estético, a simplicidade, a despreocupação na mistura do aristocrático requintado com o místico saudável, a vitalidade”. (…) “A sua frescura e espontaneidade nunca nos cansarão, jamais causarão tédio. Penetra a sua música até ao nosso coração para conquistar nele um lugar duradoiro”.
Em 1721 chega a Portugal Domenico Scarlatti. Mário de Sampaio Ribeiro, numa palestra sobre Carlos Seixas, retrata assim o episódio: “No ano seguinte (1721) veio a estabelecer-se na corte um dos maiores músicos do seu tempo e o melhor cravista europeu – Domenico Scarlatti. Espírito superior, artista na mais alta acepção do termo, Scarlatti deve ter tomado José António Carlos à sua conta, de pasmado por seu engenho e por seus quase inacreditáveis dotes de improvisador. E após 8 anos de convívio, quando o célebre napolitano abalou para Madrid, no séquito a nova Princesa das Astúrias – a Infanta Dona Maria Bárbara, cujo professor fora – deixava ficar em Lisboa um cravista familiarizado com o estilo galante, que trouxera consigo”.
Já José Mazza falecido por volta de 1798/99, retrata no seu Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses, o seguinte e curioso episódio: “até ao presente não teve Portugal outro organista tão famoso, quis o Sereníssimo Senhor Infante D. António que o grande Scarlatti, pois se achava em Lisboa no mesmo tempo, lhe desse alguma lição regulando-se por aquela ideia errada de que os portugueses por mais que façam nunca chegam a fazer o que fazem os estrangeiros, e mandou ao dito; este apenas o viu pôr as mãos no cravo conhecendo o gigante pelo dedo lhe disse = Vossa mercê é que me pode dar lições, e encontrando-se com aquele Senhor lhe disse = Vª Alteza mandou-me examinar, pois saiba que aquele sujeito é dos maiores professores que eu tenho ouvido”.
Seixas era sem dúvida um exímio cravista e um compositor extraordinariamente dotado.
Para além das numerosas Sonatas que compôs e que chegaram até nós, podemos também desfrutar de um belíssimo concerto para cravo e orquestra de cordas e de mais duas obras orquestrais, para além das algumas obras sacras.
O Concerto em Lá M para cravo e orquestra de cordas de Carlos Seixas, constitui um dos primeiros exemplos deste género em toda a Europa, apresentando-se assim como um contributo original para o barroco musical europeu, já que em relação ao período em que foi composto (primeira metade do século XVIII), pode ser considerado como um fruto do génio criador de Seixas, pois é pouco provável que este tenha conhecido os concertos para cravo que os seus contemporâneos escreveram.
Os concertos para cravo de Johann Sebastian Bach são posteriores a 1730 e os de Haendel a 1735.
Contudo é possível que Seixas tenha tido conhecimento das obras concertantes de Vivaldi, Geminiani, Corelli ou Albinoni, mas estes não escreveram concertos para cravo com acompanhamento instrumental.
Constituído por três andamentos, este concerto é uma verdadeira pérola da música concertante para cravo.
O primeiro andamento é um Allegro rítmico e vigoroso, o segundo, um Adagio tranquilo e nostálgico e o terceiro, uma Giga (dança rápida e imitativa, normalmente a dança final de uma suite).
Uma das obras para orquestra que chegou até nós é a Sinfonia em Si b M para orquestra de cordas e baixo continuo. Esta Sinfonia está escrita ao estilo da Abertura italiana com a sequência de andamentos rápido-lento-rápido, tão em voga no século XVIII.
O primeiro andamento é um Allegro cheio de frescura e vivacidade, o segundo escrito na tonalidade relativa menor (ou seja em Sol m), é um andamento lírico e nostálgico onde perpassa alguma tristeza. Neste andamento os primeiros violinos, ao exemplo dos andamentos lentos italianos, adquirem uma certa autonomia em contraponto com os outros andamentos em que geralmente primeiros e segundos violinos tocam em uníssono.
O terceiro andamento é um Minuete (forma que encontrou como já vimos, grande preferência em Seixas), rítmico e cheio de alegria.
A outra obra orquestral de Seixas que chegou até nós é a Abertura em Ré M para orquestra de cordas, oboés, trompas, trompetes, tímpanos e baixo continuo, sendo este o único exemplo na península ibérica de uma “abertura em estilo francês”.
Desta forma Seixas afasta-se dos modelos italianos e revela o seu conhecimento das composições em “estilo francês” de Lully, Rameau, Telemann ou Haendel. Este estilo muito difundido na época, conquistara já toda a Europa.
O primeiro andamento surge assim como abertura francesa, majestosa e solene destacando-se graças ao uso dos oboés, trompetes e tímpanos. Como curiosidade gostaria de referir que a indicação Staccato que aparece no manuscrito não se refere à maneira de tocar mas sim ao ritmo pontilhado que deve ser adoptado, e que é característico do “estilo francês”.
Os dois andamentos centrais, estão unidos pelo mesmo tipo de instrumentação (cordas, trompas e baixo continuo), e pelo mesmo sentimento de saudade e ternura.
Também aqui um minuete serve de andamento final, as trompas desaparecem e dão lugar à instrumentação inicial, conduzindo-nos até ao fim da abertura em ritmo de dança.
No capítulo da música sacra Seixas escreveu páginas de grande beleza mostrando acima de tudo uma grande mestria na escrita para vozes.
Prova disso é o Salmo “Dixit Dominus” (Disse o Senhor), obra majestosa e de grande riqueza vocal e instrumental.
Escrito para três solistas (soprano, contralto e tenor), coro, 2 trompetes, cordas e continuo, está dividido em 7 secções, 4 delas para coro que vão alternando com 3 árias uma para cada solista.
Na sua “Biblioteca Lusitana” Barbosa de Machado amigo pessoal de Seixas e aquele que nos proporciona a mais completa notícia biográfica do compositor, refere-se a ele desta forma bastante elogiosa: “produziu a fecundidade do seu engenho a copiosa abundância de tantas obras tão diversas na ideia, e suaves na consonância, como reguladas pelos preceitos da Arte. A mesma suavidade e destreza exercitava tocando órgão fazendo com o impulso dos dedos vocal o instrumento, e mudos os ouvintes”.
Fazendo jus às palavras de Barbosa de Machado, Seixas deixou-nos um lindíssimo Hino Tantum ergo, para coro e continuo, peça que ouviremos em seguida e que é ao mesmo tempo uma obra solene e íntima revelando-nos uma música muito comovente.
O texto do hino Tantum ergo, cujo autor é São Tomás de Aquino nascido por volta do ano de 1225 faz parte do final do hino Pange Língua.
O texto que compreende as duas últimas estrofes deste hino é o seguinte:
Tantum ergo
Adoremos, pois, prostrados
Este tão grande sacramento:
Cedam os ritos antigos o lugar
Ao novo mistério
E que a fé supra a fraqueza
Dos nossos sentidos
Glória, honra,
Louvor, poder,
Acção de graças
E bênçãos
Sejam dadas
Ao Pai e ao Filho:
E dêem-se iguais louvores
Ao que procede de um e do outro. Ámen.
A Missa em Sol M, outra das obras de carácter religioso que Seixas nos legou, está escrita para quatro solistas (soprano, contralto, tenor e baixo), coro e cordas, está dividida em cinco partes: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei.
Para além das secções corais, a Missa em Sol M inclui também quatro árias, uma para cada solista, dois duetos para soprano e contralto e um trio para soprano, contralto e tenor.
Mais uma vez podemos desfrutar de uma música plena de emoções, e de grande inspiração melódica como aliás é característica de Seixas, em especial nos andamentos lentos que são belíssimos.
Encontramos aqui, a verdadeira alma portuguesa!
Segundo Barbosa de Machado, amigo pessoal de Seixas e autor da “Biblioteca Lusitana”, este teria vindo para a capital com a intenção de se ordenar. Mas, tal não aconteceu tendo acabado por se casar, quando contava 27 anos de idade, mais precisamente a 8 de Agosto de 1731, com Maria Joana Tomásia da Silva, de quem teve dois filhos e três filhas. Na altura residia na freguesia de São Nicolau em Lisboa.
Carlos Seixas faleceu em Lisboa na sua casa por detrás da Igreja de Santo António, no dia 25 de Agosto de 1742 sendo sepultado no carneiro da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Basílica de Santa Maria (actual Sé Patriarcal).
Barbosa de Machado, já mencionado anteriormente, refere assim o episódio da sua morte – que “Enfermando de hum reumatismo, que degenerou em febre maligna se dispôs catolicamente para a morte recebendo todos os sacramentos, e recitando a Ladainha de Nossa Senhora expirou a 25 de Agosto de 1742, quando contava 38 anos, dois meses e 14 dias de idade”
A propósito da morte de Carlos Seixas, apresento aqui um Soneto presente na “Colecção de Sonetos sérios que se não acham impressos, extraídos dos manuscritos antigos e modernos, com data de 1786”, que se encontra em depósito na Biblioteca Nacional.
Por António Ferreira
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