de outras estrelas (sobre poemas de Marco Lucchesi)
para mezzo-soprano e ensemble (flauta, clarinete, violino, viola, violoncelo, vibrafone, harpa e piano)
Tenho-me interessado muitas vezes por narrativas fragmentadas. Como se cada ponto, cada
pequeno passo, cada lampejo de luz fossem imagens cristalizadas da natureza das coisas, em alguma
espécie de promessa de plenitude ou de ambição de transcendência. Por aí decidi viajar, uma outra vez.
Por minha escolha, regresso agora à poesia de um importante e magnífico escritor brasileiro contemporâneo, Marco Lucchesi. (Com poemas seus, compusera em 2015 uma obra para ensemble, "como perder-se em tanta claridade", encomendada pelo SINTESE Grupo de Música Contemporânea). Desta vez, desafiado pelo histórico Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, compus "de outras estrelas", uma peça diferente em múltiplos aspectos. Talvez ainda mais microscópica na sua feitura, esta obra é constituída por uma montagem muito rápida de pequenos momentos, cada um deles o mais único e irrepetível, desenhado e construído à volta das palavras justas de cada brevíssimo poema. Apenas no final se dá corpo a um único e extraordinário poema, mais extenso e sustentado (que haverei certamente de tratar de outra forma, numa peça coral que projecto), mas que nesta peça é concentrado num momento próprio, no termo da peça, articulado como uma espécie de narrativa fantástica. A atenção foca-se no desenho de cada um dos espaços, únicos, organizados numa sucessão contrastada, mas que poderiam ser apresentados
eventualmente com outros encadeamentos e de outras formas. Esta é apenas a que proponho.
Nesta peça, por vezes, a música está antes, introduzindo, propondo, sugerindo; outras vezes surge depois, comentando, reagindo ou amplificando. Em alguns momentos nasce de algo que não está lá, gratuita; outras, quase sempre, como consequência directa da leitura dos poemas. Esta é, por isso, uma música sempre muito ligada às palavras – o que elas dizem, sugerem ou escondem – e muito determinada pela sonoridade da língua, sejam os fonemas, a sonoridade, o ritmo, a articulação, a prosódia, os traços e texturas, os ambientes, as cores…
Lê-se por aqui também algum despojamento diante das palavras, na tentativa de as assumir e iluminar. Porque estas são quase sempre luminosas! Também pela peça viaja uma ideia de simplicidade e de economia de meios, concentrando em muito pouco o que esta poesia tão claramente propõe. Para tentar corresponder ao que se lê nos poemas, em vários momentos se assume singelamente o registo da fala, por vezes sobre a ressonância de alguns sons ou mesmo sobre o silêncio. Nos poemas cantados, no entanto, nunca se recorre ao modelo do lied. Isso é consequência, em boa parte, da brevidade da maioria dos poemas, mas é fruto principalmente de uma opção mais aberta e plural na definição de espaços e na linha geral de toda a sequência.
Esta obra, escrita por sua encomenda, é dedicada justamente ao Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, no ano em que comemora o 50.º aniversário. Parabéns!
Fernando C. Lapa