Prefácio
O pianista português José Vianna da Motta dedicou-se à composição durante cerca de trinta e cinco anos. Entre 1885 e 1890, período durante o qual residiu na Alemanha, interessou-se em particular pelo repertório de música de câmara, de coro e de orquestra, tendo composto, entre outras obras, a Abertura Dona Inês de Castro para orquestra, vários Lieder (Drei Lieder, op. 3; Fünf Lieder, op. 5; Vier Gedichte, op. 8), o Quarteto em Mi bemol maior, o Trio em Si menor, o Concerto para Piano e Orquestra em Lá maior e a Fantasia Dramática. Foi também neste período que compôs aquelas que parecem ser as suas duas únicas obras originais para piano a quatro mãos: Erinnerungen, op. 7 e Ein Dorffest (Uma festa de aldeia).
Na primeira página do seu manuscrito, Vianna da Motta atribui à suite Ein Dorffest o número de opus 11, informação tida em conta por João de Freitas Branco em Viana da Mota: uma contribuição para o estudo da sua personalidade e da sua obra. Mas a suite é apresentada sem número de opus no catálogo publicado sob a coordenação de Maria Helena Trindade e de Teresa Cascudo em José Vianna da Motta: 50 anos depois da sua morte, provavelmente devido facto de a peça Vito do ciclo Cenas Portuguesas ter sido publicada com este número de opus. Pela mesma razão, optou-se por não apresentar número de opus nesta edição.
Segundo o manuscrito, a suite teria sido composta entre os dias 22 de abril e 24 de julho de 1885. Contudo, Vianna da Motta afirma nos seus diários tê-la começado no dia 30 de abril e terminado no dia 23 de junho desse mesmo ano. Seja como for, Vianna da Motta compôs uma obra de grandes dimensões em muito pouco tempo. Uma forma de precipitação poderá estar na origem do descontentamento manifestado nos seus diários: “Estive a trabalhar na composição de Dorffest, mas não me agrada” (31 de maio); “Vim para casa, compus dois compassos da infeliz Dorffest” (1 de junho); “O último andamento de Dorffest torna-se exasperante” (20 de junho)[1]. Parece contudo que o seu professor de composição Phillip Scharwenka não partilhava o seu pessimismo. Vianna da Motta relata nos seus diários que na aula do dia 13 de maio a sua suite “só estava harmonizada um pouco desajeitadamente” e que na aula do dia 10 de junho Phillip Scharwenka considerou que o No. 3 Sonnenuntergang estava “muito bem feito”, sublinhou a qualidade do seu trabalho contrapontístico e comparou uma das suas passagens à ópera Os Mestres Cantores de Nuremberg de Richard Wagner[2].
A análise cuidada do manuscrito revela incertezas do compositor. Por exemplo, Vianna da Motta tinha atribuído ao No. 3 Sonnenuntergang o andamento Langsam antes de lhe acrescentar o termo Mässig. Tinha atribuído ao No. 4 Intermezzo o andamento Lebhaft, especificado posteriormente pelo termo “(Vivace)”[3], antes de riscar “Lebhaft” e de indicar Sehr schnell. Para além disso, várias passagens musicais inicialmente pensadas para uma das mão de um dos pianistas foram transferidas para a outra mão desse pianista ou até mesmo para uma das mãos do outro pianista. O conjunto destas correcções revela que Vianna da Motta procurava um equilíbrio entre a escrita, a ergonomia e o resultado sonoro.
É de acrescentar que nos compassos 33-34 e 95-96 do No. 2 Tanz Vianna da Motta assinalou oitavas paralelas que tencionava provavelmente corrigir, o que revela a importância que a condução das vozes tinha para ele. Por esta razão, e embora Vianna da Motta não tenha assinalado outros paralelismos – como é o caso dos que se encontram nos compassos 41 e 42 do No. 1 Einleitung (Festzug) e nos compassos 81-83 do No. 3 Sonnenuntergang –, decidimos não ter em conta a correcção feita pelo compositor no compasso 72 do No. 1 Einleitung (Festzug) que consiste na substituição do segundo ré da mão direita do Secondo pela nota si. Com efeito, esta correcção geraria quintas paralelas.
Nesta suite, o material temático é um elemento unificador. Os dois temas apresentados no No. 1 Einleitung (Festzug) – o primeiro relativo aos compassos 1 a 8, o segundo relativo aos compassos 21 a 29 – são utilizados nas outras partes, seja como tema principal – como é o caso do No. 3 Sonnenuntergang e do No. 4 Intermezzo os quais são respectivamente construídos sobre o segundo e primeiro tema –, seja como uma reminiscência – como é o caso do No. 2 Tanz no qual se ouve por duas vezes parte do primeiro tema (c. 42-48 e 104-110), do No. 3 Sonnenuntergang o qual evoca subtilmente o ritmo característico do primeiro tema (c. 85-87), do No. 4 Intermezzo o qual termina com uma variação rítmica do segundo tema (c. 54-62) e do No. 5 Schlussreigen o qual recorda o primeiro tema antes de concluir a suite (c. 201-206). O No. 2 Tanz e o No. 5 Schlussreigen são assim os únicos que desenvolvem temas próprios.
O universo temático evocado no título da obra (Uma festa de aldeia) e a sequência cénica sugerida nos títulos das suas partes (Procissão, Dança, Pôr do sol) conferem uma dimensão programática à suite Ein Dorffest e levam a crer que ela é o reflexo do imaginário popular de Vianna da Motta numa altura da sua vida em que a procura pela “cor local” ainda não se encontrava propriamente nos seus horizontes artísticos.
João Costa Ferreira
[1] José Vianna da Motta, Diários (1883-1893), coord. de Christine Wassermann Beirão, trad. de Elvira Archer e transc. de José Manuel Beirão, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal: Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2015, p. 212, 214 e 230.
[2] Idem, p. 205 e 221.
[3] O equivalente italiano de Lebhaft pode ser Vivace ou Allegro. Note-se que no No. 2 Tanz Vianna da Motta especificou “(Allegro)” e não Vivace como equivalente italiano.