Arrisco um lugar-comum: a música é uma arte que não se vê. Sente-se.
As obras de escultura e de pintura vemo-las e é dessa forma que as fruímos. Não precisamos de mais ninguém. Entre o David do Michelangelo Buonarroti e aquele que o contempla não há necessidade de um intermediário. Entre as variações do Papa Inocêncio X de Francis Bacon e aquele que as contempla não há necessidade de um intermediário. Não é preciso uma terceira pessoa que nos signifique a arte. A relação é directa: Michelangelo e eu; Bacon e eu. Mais ninguém.
A música, bem pelo contrário, precisa de uma terceira entidade que no-la signifique: o intérprete. A obra deixada pelo compositor, o seu testemunho artístico vertido em grafismos mais ou menos enigmáticos numa partitura, não se cumpre nela, não encontra nela a sua plenitude.
Um exemplo: a partitura manuscrita do Prélude à l’Après-midi d’un faune de Debussy, exibida num museu perto de si, não está lá para oferecer a obra a quem a vê no expositório. Está lá como documento manuscrito histórico, por certo, mas apenas isso. Naquele museu não se ouve o prelúdio e, como tal, não se compreende a sua essência. Nem sequer a primeira página em que a partitura está aberta e muda se significa, vertida em som. A sua missão artística final, a obra em si, não se cumpre. Precisamos da orquestra sinfónica que, sob a batuta de um xamã e nas pantufas ensurdinadas com que Debussy a calçou, a cante naqueles cento e dez compassos que fazem assombro, tantos quantos os cento e dez versos alexandrinos do poema de Stéphane Mallarmé que lhe subjaz: magnífica declamação sinfónica, projecção incorpórea do poema simbolista.
A obra deixada pelo compositor, a partitura, pois, está incompleta. Essa é a condição tão especial da arte musical: a necessidade que ela tem, uma vez criada, de ser recriada.
Essa missão está confiada aos intérpretes. Lotaria? Sim, montanha russa de emoções, na perspectiva de quem compõe: sendo a natureza humana diversa, pela sua própria essência, nem sempre a interpretação está à altura da ideia. Mas, outras tantas vezes, está para além dela. Geram-se, assim, situações que vão da consternação ao êxtase, da frustração à quintessência. Por vezes, situações cómicas, mesmo: lembro-me de um percussionista adolescente que tinha um desenho rápido e ostinato no “shaker” numa dada passagem de uma ópera minha. Estava de tal forma entusiasmado com a iminência da entrada daquele momento que, chegado lá, irrompe, cheio de ganas, a fazer a passagem, só que no dobro da velocidade. Proeza extraordinária: chegou ao fim da longa passagem sem explodir, tampouco pegar fogo, para meu espanto e colapso cómico.
Faz parte da condição da música: após a criação sobrevem a necessidade da recriação, fazendo a obra renovar-se das cinzas, uma vez e outra, irrepetível num dado ângulo de fénix mítica. E esse facto, só por si, confere-lhe uma aura de mistério, de enigma, de suspensão. Não será essa a razão pela qual, muito precisamente, os mestres das outras formas de expressão artística conhecidamente invejam a música?
Declamação imaginária: é disso que se trata aqui, nestas Canções sem palavras. O violoncelo e o piano, unificados numa missão poética, deixam pistas, declamam textos imaginários, doridos, uns, dolentes, outros, sensuais, estes, ascéticos, aqueles, dois deles, lá mais perto do fim, parecendo, até, escarnecer. E que bem declamados que estão estes poemas imaginários pelo Samuel Santos e pelo Eduardo Jordão! Que canto sublime deles se decanta!
Horas felizes, estas, em que a música por nós concebida, imaginada e criada se desdobra em coisa maior naqueles que logram recriá-la de maneira assim subida, assim solar, assim sumptuosa: luxo asiático com que estes intérpretes nos aquecem. O seu som é um manto, um manto que nos abraça como apenas um manto de Klimt nos sabe abraçar: em púrpura debruada a ouro.
Eu quis muito escrever estes poemas musicais, estas canções flébeis e outonais. O Samuel Santos deu-nos magoados fins de dia e o Eduardo levou, com a sua harmonia, tudo ainda mais além, num piano histórico onde muitas vozes cantaram: não apenas as por mim convocadas, mas também o coro incorpóreo de hologramas que ali parecia habitar, tantas e tantas vezes que o Eduardo esteve na aura da quintessência. O José Fortes tudo isto abraçou, tudo isto compreendeu no som que só um ouvido daqueles transforma em bênção.
Eurico Carrapatoso
Lisboa 12 de Novembro de 2018
Dados CD
Alinhamento:
1. O dardo do amor 2:38
2. Valsa dos velhos amantes 5:11
3. Eu 3:52
4. Outono 5:28
5. Alegoria 5:31
6. Pranto 4:12
7. Como se chovesse 2:07
8. Solidão 4:46
9. Cinco canções sem palavras - nº1 2:47
10. Cinco canções sem palavras - nº2 6:19
11. Cinco canções sem palavras - nº3 3:20
12. Cinco canções sem palavras - nº4 2:50
13. Cinco canções sem palavras - nº5 2:11
Tempo de música - 51:12
Tempo total - 51:36