Prefácio
Nos anos que se seguem ao Ultimato britânico de 1890, Portugal atravessa um período marcado por um sentimento nacionalista que invade a criação artística portuguesa. É neste contexto que nascem as Cinco Rapsódias Portuguesas para piano de José Vianna da Motta, um dos maiores ciclos composto por este pianista e compositor romântico português. O teor nacionalista destas obras está, à partida, explícito no uso de melodias populares portuguesas como material temático. No entanto, convém notar que, para Vianna da Motta, a atribuição da qualidade nacionalista a uma obra passa pelo cruzamento da essência do material musical com aquilo a que ele chama de “expressão” individual do compositor:
“Talvez a canção popular seja o melhor caminho para chegar à alma do povo, mas terá então que encontrar-se a própria expressão para o sentimento da nação” (Vianna da Motta, in Die Musik, 01/04/1907).
Curiosamente, na primeira página do manuscrito, Vianna da Motta apresenta o título deste ciclo em francês – “Cinq Rhapsodies portugaises pour piano par José Vianna da Motta” –, facto que pode levantar dúvidas sobre a autenticidade do sentimento nacionalista em Vianna da Motta. Contudo, parece ser mais pertinente considerar que este facto resulta de um hábito de uma época onde o francês é a língua internacional ou que o compositor pretendia dar visibilidade internacional à sua obra, levar além-fronteiras a expressão da alma nacional portuguesa.
É difícil determinar com exactidão a data em que cada uma destas rapsódias foi escrita já que o compositor não a indica no seu manuscrito. Crê-se que a 1ª Rapsódia Portuguesa tenha sido escrita por volta de 1891, as demais em 1894 ou 1895 segundo uma carta dirigida a Fernando Lopes-Graça:
“Estimei muito ver o seu interesse pelas minhas composições de carácter nacional e posso dizer-lhe a data precisa em que entrei nesse caminho. Antes de vir a Portugal em 1893 já tinha escrito uma Rapsódia sobre motivos portugueses […]. Em 94 ou 95 escrevi ainda 5 Rapsódias, das quais só se publicou a 4ª” (carta datada de 3 de Novembro de 1933).
É provável que Vianna da Motta se tenha equivocado ao afirmar ter escrito cinco rapsódias em 1894 ou 1895 já que não se conhece nenhuma sexta rapsódia. Para além disso, vários argumentos sustentam a tese segundo a qual as Cinco Rapsódias Portuguesas foram compostas em dois momentos distintos (a 1ª Rapsódia Portuguesa num primeiro momento, as quatro últimas rapsódias num segundo momento): a língua e o formato utilizados nos títulos dos cabeçalhos das rapsódias (“Rhapsodie Portugaise Nr. 1”, “2ª Rhapsodia portuguesa”, “3ª Rhapsodia portuguesa”, etc.); a assinatura do compositor (“José Vianna da Motta” no primeiro momento, “J. V. da Motta” no segundo momento); a diferença substancial que existe no tipo de tratamento temático desses dois momentos (apenas na 1ª Rapsódia Portuguesa se encontram temas tratados em forma de variações melódicas).
Para além das circunstâncias em que estas obras foram compostas, é possível que a figura de Franz Liszt tenha guiado Vianna da Motta na composição das Cinco Rapsódias Portuguesas. O interesse pela vida e obra do pianista e compositor húngaro evidencia-se nos artigos e trabalhos que Vianna da Motta lhe consagrou: entre outros, a obra biográfica A Vida de Liszt, o capítulo “Algumas considerações sobre os poemas sinfónicos de Franz Liszt” do primeiro volume de Música e músicos alemães, a revisão de uma parte significativa da obra para piano solo de Liszt para a editoraBreitkopf & Härtel. Para mais, Vianna da Motta terá sido, segundo as suas palavras, fortemente marcado pela experiência vivida junto de Franz Liszt aquando do estágio em Weimar, no verão de 1885:
“Eu desejava, pois, submeter-me […] à influência desse vulto extraordinário, certo que receberia dele (como mais tarde recebi de Bülow) impressões fecundas que me guiariam toda a minha vida” (inMúsica e músicos alemães: Recordações, Ensaios, Críticas).
Segundo a perspectiva apresentada, faz sentido considerar que as Rapsódias Húngaras de Franz Liszt tenham servido de modelo a Vianna da Motta para a criação das Rapsódias Portuguesas. Vejam-se alguns exemplos de possíveis influências de Liszt que se encontram com relativa frequência nas Cinco Rapsódias Portuguesas: os temas folclóricos são elementos estruturantes, isto é, as secções formais são delimitadas pelo trabalho de temas precisos; essas secções são extremamente contrastantes no que respeita a escrita, a cor, o andamento e o carácter e são, geralmente, encadeadas através de passagens em estilo cadencial, de passagens onde se intercalam fragmentos dos temas ou através de quebras abruptas do discurso musical; os temas populares, ou partes deles, estão associados a um carácter específico; o trabalho temático incide, maioritariamente, sobre variações da decoração da melodia.
A construção em forma de espelho no que respeita o número de temas populares trabalhados em cada uma das rapsódias (5 – 2 – 3 – 2 – 5) e no que respeita os seus andamentos essenciais (rápido – lento – rápido – lento – rápido) faz das Cinco Rapsódias Portuguesas um ciclo organizado e pensado para recitais de piano, apesar de todas elas terem sido escritas em tonalidade maior. Nesta primeira edição da integral das Rapsódias Portuguesas para piano de José Vianna da Motta optou-se por indicar exclusivamente as dedilhações propostas pelo compositor. As melodias apresentadas no restante deste prefácio foram extraídas do manuscrito de Vianna da Motta anexado às rapsódias, manuscrito intitulado “Melodias populares utilizadas pelo autor”. A forma que essas melodias apresentam nesse manuscrito será designadaoriginal.
A 1ª Rapsódia Portuguesa, em sol maior, é talvez a mais exigente do ponto de vista da destreza digital. As melodias utilizadas provêm de um repertório específico: Fados. Esta característica, sendo única neste ciclo, reforça a ideia de que esta rapsódia tenha sido escrita num momento distinto das outras rapsódias. Toda a primeira secção, em Allegretto, é consagrada a variações melódicas do tema “Fado de Coimbra”
A 2ª Rapsódia Portuguesa, em lá maior, é inteiramente construída em torno de dois temas: “Manuel, tão lindas moças” do Porto e um “S. João” da Figueira da Foz
Sobre cada uma das partes constituintes do primeiro tema, “Manuel, tão lindas moças”, incidem dois tipos de trabalho temático bem distintos. A primeira parte, correspondente aos oito primeiros compassos da melodia, é trabalhada em estilo coral predominantemente homorítmico mas por vezes polifónico. As linhas melódicas são abundantemente acompanhadas de linhas de legato que sugerem um lirismo exacerbado. A segunda parte, correspondente aos quatro últimos compassos, é inteiramente homorítmica, num estilo de marcha. Este carácter é reforçado pelo andamento ligeiramente mais vivo que o Andantino inicial – Più mosso e Più vivo –, pelos staccati e pela simplicidade das harmonias utilizadas (tónica e dominante).
A 3ª Rapsódia Portuguesa, em ré maior, é um bom exemplo de obra onde as melodias populares, ou partes delas, estão associadas a um carácter específico. O primeiro tema popular desta rapsódia é o mais longo de todos os temas trabalhados neste ciclo: “A viuvinha” do Alentejo
A 4ª Rapsódia Portuguesa, intitulada “Oração da Tarde”, possui várias características que, na música do século dezanove, remetem para uma dimensão religiosa: a tonalidade de lá bemol maior; o andamento Adagio que sugere serenidade; o motivo descritivo cloches composto por uma colcheia acentuada e uma semínima, motivo que visa criar musicalmente o toque dos sinos e a sua ressonância; etc. Esta é, sem dúvida, a rapsódia mais elaborada harmonicamente e aquela onde o potencial expressivo do cromatismo é mais explorado.
Vianna da Motta utiliza apenas duas melodias nesta obra: o tema popular “Ai que lindos amores que eu tenho”, tema oriundo da cidade de Elvas que aparece na sua forma original e na tonalidade da dominante logo no primeiro compasso, e o tema “Ao menino Deus”, melodia do século dezoito.
A 5ª Rapsódia Portuguesa, em fá maior, é intitulada “São João”. Os dois primeiros temas apresentados são, justamente, dois temas populares das festas de São João. É apenas no compasso 22 que o primeiro tema “S. João” aparece pela primeira vez na íntegra conforme o original, depois de vários compassos onde motivos deste tema se fazem ouvir no tom da dominante até à cadência em fá maior do compasso 21. O acompanhamento em ostinato em torno da fundamental e da quinta de um acorde perfeito, o andamento Allegretto e a indicação allegramente, a abundância de terceiras, a repetição do motivo no compasso seguinte e o intervalo de segunda maior criado entre este motivo e a voz superior sugerem uma atmosfera musical plena de graciosidade e de frescura, apesar da dinâmica forte. Posteriormente, este tema aparece sobretudo associado a indicações do tipo marcato ou marcatissimo sob a dinâmica fortissimo pelo que este tema é crucial na construção do carácter festivo que o título da rapsódia sugere.