A peça para piano Sombras foi composta em 1994 e resultou de um desafio do pintor e escultor Alvaro Rocha (1932-2010), que me instigou a escrever uma obra musical a partir de um livro que estava a conceber. Sombras (o livro), integrava uma sequência de desenhos a tinta aos quais o pintor juntava água que posteriormente espalhava com os dedos, cada um acompanhado por um título, e cuja leitura sequencial se constituía como uma espécie de grande poema visual.
As conotações impressionistas são, deste modo, muito presentes na composição, utilizando frequentemente a escala de tons, evocando a água presente na técnica pictórica de autor e a mancha difusa que esta provoca. Não foi minha pretensão, no entanto, percorrer passo a passo a sequência dos desenhos, mas antes traduzir sensações, partindo daqueles que me pareceram ser os seus mais importantes elos temáticos.
Sombras está dividida em seis partes, partindo de um tema que vai estando omnipresente, com diferentes graus de evidência, densidade e carácter. Os frequentes movimentos paralelos entre as duas mãos invocam constantemente a dicotomia Luz - Sombra. As diferentes partes poderão ser caracterizadas do seguinte modo:
1. Lento – poco piu mosso - A relação Luz - Sombra, entrecortada pelo esvoaçar de um pássaro e o borbulhar da vida na natureza.
2. Moderato giocoso – As marionetes, iluminadas por evocações breves do tema principal, terminando com a Luz descendo tranquilamente.
3. Andante tranquillo – O leve flutuar dos balões que sobem e descem.
4. Drammatico - Tranquillo - Agitato – Cristo na Cruz, arbitrando a luta entre o bem e o mal. O tema de Cristo evoca uma cruz na partitura, sendo o Bem retratado pelo tema principal em quintas perfeitas e o Mal pelo mesmo tema em quintas diminutas, um intervalo musical historicamente associado ao Diabo.
5. Largo – A tranquilidade do Homem na Natureza.
6. Grandioso - Presto agitato – O triunfo da Luz, culminando com a libertação das marionetes e o rebentar dos balões, “no rodopio dos destinos”.
Luís Pipa, Março de 2011