Atendendo ao catálogo de José Vianna da Motta publicado sob a coordenação de Maria Helena Trindade e de Teresa Cascudo em José Vianna da Motta: 50 anos depois da sua morte, as Zwei Klavierstücke nach A. Böcklin (Duas peças para piano segundo A. Böcklin) correspondem ao Opus 10. Porém, no seu manuscrito, Vianna da Motta atribuiu-lhes o número 9. No catálogo organizado por João de Freitas Branco em Viana da Mota: uma contribuição para o estudo da sua personalidade e da sua obra, o autor respeita a indicação do compositor mas faz a seguinte observação: “Viana da Mota organizou por mais de uma vez a numeração das suas obras. Resulta a existência de peças diferentes com o mesmo número de opus. O op. 9 definitivo é, seguramente, a colecção Cenas Portuguesas”. Assim, é possível que Maria Helena Trindade e Teresa Cascudo tenham atribuído o número 10 às Zwei Klavierstücke nach A. Böcklin para evitar a repetição do número 9 nas obras para piano solo. Por questões de clareza, optou-se por não apresentar número de opus nesta primeira edição.
Segundo o diário de Vianna da Motta, os títulos das peças “Meeresidylle” e “Im Spiel der Wellen” foram atribuídos a 8 de novembro de 1891. Nesse dia, Vianna da Motta escrevia:
“Ao meio-dia, [estive] em casa do Hausm.[ann]. Depois, em casa do Langh.[ans]. Toquei-lhe as minhas peças, que achou um pouco «aquosas», de modo que acabámos finalmente por batizá-las segundo Böcklin” (in Diários (1883-1893), coord. de Christine Wassermann Beirão, trad. de Elvira Archer).
Admite-se assim que essa nominação determina o termo da composição das peças. Contudo, a revelação mais interessante desta citação prende-se com o processo criativo que estabeleceu a relação entre as obras e os títulos. Muito embora estas peças possam parecer surgir de uma inspiração dos quadros “Meeresidylle” (1887) e “Im Spiel der Wellen” (1883) do pintor Arnold Böcklin, este relato revela que os títulos das peças de Vianna da Motta surgiram posteriormente às suas composições, ou seja, foi a música que evocou os quadros e não os quadros que inspiraram a música. Apesar disso, para uma interpretação avisada, é útil conhecer os quadros de Böcklin e conhecer as circunstâncias da nominação das obras de Vianna da Motta na medida em que a observação de Friedrich Wilhelm Langhans e a consequente associação das peças aos quadros marcaram inevitavelmente e definitivamente as obras de Vianna da Motta. Com efeito, essa observação sugere imagens musicais presentes naquela audição, imagens que permitem imaginar a estética, o carácter e a sonoridade da interpretação de Vianna da Motta; essa associação revela a elaboração do pensamento que traduziu essas imagens musicais em imagens pictóricas. Nesta perspetiva, toda a interpretação musical fundamentada na observação desses quadros permitirá uma aproximação ao pensamento criativo que deu origem àquela associação.
As peças deste ciclo contêm um elemento unificador bastante atípico: uma célula temática comum. Ela adquire expressões diferentes em cada uma das peças, fruto dos traços que as caracterizam. O uso da tonalidade de lá maior nas duas peças contribui também para a coesão do ciclo.
A peça a, “Meeresidylle”, caracteriza-se essencialmente pelo acompanhamento que sustenta a melodia. Composto de valores rítmicos curtos e variados – semicolcheias, sextinas de semicolcheias e fusas – inseridos num único andamento (Andante con moto), o acompanhamento cria movimentos diferenciados que atuam sobre a perceção do andamento. O ponto culminante do trabalho composicional sobre este material encontra-se a partir do compasso 63, numa passagem onde os seus elementos são organizados numa espécie de accelerando rítmico, apesar das indicações poco ritardando e largo con passione implicarem que o tempo sofra um certo alongamento.
A partir do compasso 29 encontra-se uma das passagens musicais que poderá ter suscitado a sensação “aquosa” de Langhans. Os acordes arpejados, as numerosas sextas, sétimas e nonas, as indicações pianissimo, dolcissimo e una corda aliadas ao uso do pedal de sustentação (que Vianna da Motta utilizou certamente) criam uma atmosfera musical potencialmente evocadora de imagens “aquosas”. No que toca a interpretação desta passagem, assim como da passagem dos compassos 8 a 11 e da passagem dos compassos 73 a 79, é desejável não realizar um crescendo que a linha melódica ascendente poderia erroneamente induzir.
A peça b, “Im Spiel der Wellen”, distingue-se pelo seu carácter algo scherzando, proveniente do andamento Allegro con spirito, da indicação molto giocoso, dos acordes arpejados, das semicolcheias em staccato ou em non legato maioritariamente acompanhadas da dinâmica piano ou pianissimo, das colcheias em staccatissimo, dos acentos nas partes fracas dos tempos, etc. É também através da sequência de vários destes elementos num curto espaço de tempo que esse carácter emana, particularmente em aparições do tema: colcheia staccato, colcheia não staccato, semicolcheia e colcheia staccato, colcheia acentuada em tempo fraco e ligada à parte forte do tempo seguinte, série de semicolcheias staccato, etc.
Procurar nesta peça passagens que possam ter suscitado em Langhans a sensação “aquosa” pode revelar-se um trabalho infrutífero ou forçado. Parece ser plausível admitir a hipótese de que, se a peça b, “Im Spiel der Wellen”, também evocou o universo aquoso em Langhans foi porque este estava mergulhado na atmosfera da peça a, “Meersidylle”. Segundo esta hipótese, a peça b, não existe enquanto tal sem a peça a. Elas existem antes como um todo que encontra a sua coerência musical numa audição sequenciada. Esta hipótese corrobora, aliás, a ideia segundo a qual, para Vianna da Motta, a organização destas peças por ordem alfabética (a e b), ao invés de ordem numérica (1 e 2), reforça a sua coesão.
João Costa Ferreira