Autos das Barcas de Gil Vicente
(notas gerais)
Nas condições em que a proposta de criação da obra surgiu, pesou muito a vontade de fazer dela também um exercício de economia de meios. Dessa forma tudo se desenhou – tanto em termos musicais, como cénicos – para que apenas dois actores e cinco músicos se encarregassem de criar toda a complexa teia de mais de vinte personagens em todos os três autos, desdobrando-se nos mais diversos e contrastantes registos. Tal desao levou a que se procurasse soluções musicais e cénicas capazes de tornarem viável esse propósito.
Cada instrumentista participa também, de forma enfática, na composição de diversos personagens. Isso é particularmente evidente no Auto da Barca do Purgatório, no qual todas as cenas são introduzidas por um solo instrumental absoluto, tentativa de incarnação sonora de uma personagem e espécie de seu duplo em toda a cena. Existem também muitas outras situações em que o desempenho dos instrumentistas se combina com os actores. E todos cantam ou podem cantar.
Há diversos aspectos em que o trabalho sobre esta obra permite mudanças e ampliações, nomeadamente no que respeita ao número e tipo de vozes utilizadas (actores, solistas ou coro). O que se diz das vozes faladas ou cantadas, pode aplicar-se também relativamente à percussão.
Muitas vezes as partituras não indicam expressamente quais os instrumentos de percussão a utilizar, de que tipo e em que número, pretendendo deixar a sua definição ao critério de cada produção, de acordo com os recursos existentes. Assim, o número e tipo de instrumentos de percussão pode ser relativamente modificado, nomeadamente em muitas situações em que a percussão sublinha ou pode sublinhar algum elemento do texto e da acção. Desta forma há lugar para comentários ou intervenções da percussão, para além daqueles que estão previstos na partitura. O mesmo se diga do número de executantes.
A perspectiva original da obra também inclui a possibilidade de qualquer dos autos se preparar e apresentar com um número maior de actores ou de músicos. Isso poderá permitir que mais pessoas se envolvam na interpretação. Numa perspectiva pedagógica – e uma vez que os Autos das Barcas são obras com presença nos programas de estudo da língua portuguesa – também será possivel apresentar apenas algumas selecções de cenas, de acordo com os recursos e contextos de cada produção.
Fernando C. Lapa
Sobre o Auto da Barca do Purgatório:
(Versão estreada em 28 de Abril, nos Dias da Música de 2018, na Sala Almeida Negreiros do Centro Cultural de Belém)
Purgatório retoma o motivo trabalhado em Inferno, mas constitui uma unidade autónoma. “São representações distintas de almas humanas, num conjunto que se vai formando: Purgatório conhece Inferno, Glória conhece Inferno e Purgatório”, como diz Cardeira Villalba.
Purgatório terá sido apresentado na capela de um Hospital, para que os doentes pudessem assistir ao auto, comportando, assim, a função didática de ser apresentado a quem está a sentir de perto a doença ou a morte. 1518 é o ano a que se atribui a primeira apresentação pública desta obra e é também o ano da peste em Lisboa, pelo que a actualidade da doença é tão pertinente que se imiscui discretamente no auto.
“Purgatório é, simultaneamente, um espaço e um tempo, o tempo de espera num cais de embarque. É esperar e não embarcar. Os três autos com barcas passam-se no Purgatório, mas é em 1518 que este surge como uma instância nova, um destino (provisório) que não é o Paraíso nem o Inferno e para onde não há barca - há só ficar em cena na margem do rio, à espera de outro destino que há-de vir depois do fim do auto”, como escreve José Camões.
Assim, O Auto da Barca do Purgatório tem uma construção mais linear e alargada, sugerindo movimentos horizontais e sustentados, com alguns cirúrgicos pontos de contraste ou de ruptura. Esta dinâmica energética reflectir-se-á na proposta cénica e sonora, que, apesar de beber da mesma estética que acompanha o tríptico, torna a obra absolutamente distinta das demais”.
Sara Barros Leitão / Fernando C. Lapa
Outra proposta de leitura dos Autos das Barcas de Gil Vicente
(algumas notas breves)
Peças eminentemente teatrais na genial concepção de Gil Vicente, estes Autos das Barcas foram desta vez pensados numa perspectiva artística um pouco mais larga, algo híbrida, que em diversos aspectos nos remete também para um mundo próximo da ópera. Com um texto maioritariamente falado e representado, estaríamos no território do teatro. No entanto um dos aspectos mais relevantes desta proposta consiste em que a música tem aqui uma presença praticamente constante, implicada a diversos níveis no sentido geral da obra e na narrativa de cada auto. A música não pretende ser apenas um elemento decorativo, qual pano de fundo ou cenário; ela assume-se sobretudo como um elemento da narrativa, implicado na caracterização de cenas e personagens, antecipando, propondo, reforçando, comentando.
Nas condições em que a proposta de criação da obra surgiu, pesou muito a vontade de fazer dela também um exercício de economia de meios. Dessa forma tudo se desenhou – tanto em termos musicais, como cénicos – para que apenas dois actores e cinco músicos se encarregassem de criar toda a complexa teia de mais de vinte personagens, desdobrando-se nos mais diversos e contrastantes registos. Tal desafio levou a que se procurasse soluções musicais e cénicas capazes de tornar viável esse propósito.
Cada instrumentista participa também, de forma enfática, na composição de diversos personagens. Isso é particularmente evidente no Auto da Barca do Purgatório, no qual todas as cenas são introduzidas por um solo instrumental absoluto, tentativa de incarnação sonora de uma personagem e espécie de seu duplo em toda a cena. Existem também muitas outras situações em que o desempenho dos instrumentistas se combina com os actores. E todos cantam ou podem cantar.
Há diversos aspectos em que o trabalho sobre esta obra permite mudanças e ampliações, nomeadamente no que respeita ao número e tipo de vozes utilizadas (solistas ou coro). O que se diz das vozes cantadas, pode aplicar-se também relativamente à percussão. O número e tipo de instrumentos de percussão pode ser relativamente modificado, nomeadamente em muitas situações em que a percussão sublinha ou pode sublinhar algum elemento do texto e da acção. Desta forma há lugar para comentários ou intervenções da percussão, para além daqueles que estão previstos na partitura. O mesmo se diga do número de executantes.
A perspectiva original da obra também inclui a possibilidade de qualquer dos autos se preparar e apresentar com um número maior de actores ou de músicos. Isso poderá permitir que mais pessoas se envolvam na interpretação. Numa perspectiva pedagógica – e uma vez que os Autos das Barcas são obras com presença nos programas de estudo da língua portuguesa – também será possivel apresentar apenas algumas selecções de cenas, de acordo com os recursos e contextos de cada produção.
Fernando C. Lapa