Autos das Barcas de Gil Vicente
(notas gerais)
Nas condições em que a proposta de criação da obra surgiu, pesou muito a vontade de fazer dela também um exercício de economia de meios. Dessa forma tudo se desenhou – tanto em termos musicais, como cénicos – para que apenas dois actores e cinco músicos se encarregassem de criar toda a complexa teia de mais de vinte personagens em todos os três autos, desdobrando-se nos mais diversos e contrastantes registos. Tal desao levou a que se procurasse soluções musicais e cénicas capazes de tornarem viável esse propósito.
Cada instrumentista participa também, de forma enfática, na composição de diversos personagens. Isso é particularmente evidente no Auto da Barca do Purgatório, no qual todas as cenas são introduzidas por um solo instrumental absoluto, tentativa de incarnação sonora de uma personagem e espécie de seu duplo em toda a cena. Existem também muitas outras situações em que o desempenho dos instrumentistas se combina com os actores. E todos cantam ou podem cantar.
Há diversos aspectos em que o trabalho sobre esta obra permite mudanças e ampliações, nomeadamente no que respeita ao número e tipo de vozes utilizadas (actores, solistas ou coro). O que se diz das vozes faladas ou cantadas, pode aplicar-se também relativamente à percussão.
Muitas vezes as partituras não indicam expressamente quais os instrumentos de percussão a utilizar, de que tipo e em que número, pretendendo deixar a sua definição ao critério de cada produção, de acordo com os recursos existentes. Assim, o número e tipo de instrumentos de percussão pode ser relativamente modificado, nomeadamente em muitas situações em que a percussão sublinha ou pode sublinhar algum elemento do texto e da acção. Desta forma há lugar para comentários ou intervenções da percussão, para além daqueles que estão previstos na partitura. O mesmo se diga do número de executantes.
A perspectiva original da obra também inclui a possibilidade de qualquer dos autos se preparar e apresentar com um número maior de actores ou de músicos. Isso poderá permitir que mais pessoas se envolvam na interpretação. Numa perspectiva pedagógica – e uma vez que os Autos das Barcas são obras com presença nos programas de estudo da língua portuguesa – também será possivel apresentar apenas algumas selecções de cenas, de acordo com os recursos e contextos de cada produção.
Fernando C. Lapa
Sobre o Auto da Barca da Glória:
(Versão estreada em 29 de Abril nos Dias da Música de 2018, na Sala Almeida Negreiros do Centro Cultural de Belém)
O Auto da Barca da Glória, último deste tríptico, o único que foi escrito em Castelhano e que, por isso, se distingue sonoramente dos anteriores. Atribui-se a sua primeira apresentação a 1519, onde Leonor de Áustria terá sido espectadora. Por essa razão, “as dignidade altas e os Anjos, mas também o Diabo e a Morte, falam a língua da nova rainha”, como escreve Ernestina Carrilho.
Glória é um desfile de figuras em que se apresentam almas depois da morte, sendo que a Morte, desta vez, ganha um corpo vivo. “Cada uma das altas dignidade entra em cena pela sua mão, ao ritmo de um movimento de ir e vir, uma imagem teatralizada da Morte como inexorável ceifeira de vidas”, que inspira o ritmo do espectáculo. Organizado de forma estilizada, faz suceder personagens da área do poder, numa sucessão hierárquica. A sugestão é de movimentos direcionais ascendentes, enfatizando a progressão em crescendo. Será curioso explorar as possibilidades de um texto em castelhano traduzido em música e na barca que mais referências tinha em si encerrada elementos cénicos, ser forçada a um jogo que privilegia a economia de recursos físicos.
Glória terá sido apresentada por ocasião da semana santa, e apesar de não parecer ser um auto muito adequado à realidade litúrgica, todos localizam a sua representação nos dias de redenção. Acontecimento que, curiosamente, se irá repetir na apresentação deste espectáculo numa tarde de domingo, não muito longe da Páscoa, sob o mote: Castigos, Pecados e Graças Divinas.
Sara Barros Leitão / Fernando C. Lapa
Outra proposta de leitura dos Autos das Barcas de Gil Vicente
(algumas notas breves)
Peças eminentemente teatrais na genial concepção de Gil Vicente, estes Autos das Barcas foram desta vez pensados numa perspectiva artística um pouco mais larga, algo híbrida, que em diversos aspectos nos remete também para um mundo próximo da ópera. Com um texto maioritariamente falado e representado, estaríamos no território do teatro. No entanto um dos aspectos mais relevantes desta proposta consiste em que a música tem aqui uma presença praticamente constante, implicada a diversos níveis no sentido geral da obra e na narrativa de cada auto. A música não pretende ser apenas um elemento decorativo, qual pano de fundo ou cenário; ela assume-se sobretudo como um elemento da narrativa, implicado na caracterização de cenas e personagens, antecipando, propondo, reforçando, comentando.
Nas condições em que a proposta de criação da obra surgiu, pesou muito a vontade de fazer dela também um exercício de economia de meios. Dessa forma tudo se desenhou – tanto em termos musicais, como cénicos – para que apenas dois actores e cinco músicos se encarregassem de criar toda a complexa teia de mais de vinte personagens, desdobrando-se nos mais diversos e contrastantes registos. Tal desafio levou a que se procurasse soluções musicais e cénicas capazes de tornar viável esse propósito.
Cada instrumentista participa também, de forma enfática, na composição de diversos personagens. Isso é particularmente evidente no Auto da Barca do Purgatório, no qual todas as cenas são introduzidas por um solo instrumental absoluto, tentativa de incarnação sonora de uma personagem e espécie de seu duplo em toda a cena. Existem também muitas outras situações em que o desempenho dos instrumentistas se combina com os actores. E todos cantam ou podem cantar.
Há diversos aspectos em que o trabalho sobre esta obra permite mudanças e ampliações, nomeadamente no que respeita ao número e tipo de vozes utilizadas (solistas ou coro). O que se diz das vozes cantadas, pode aplicar-se também relativamente à percussão. O número e tipo de instrumentos de percussão pode ser relativamente modificado, nomeadamente em muitas situações em que a percussão sublinha ou pode sublinhar algum elemento do texto e da acção. Desta forma há lugar para comentários ou intervenções da percussão, para além daqueles que estão previstos na partitura. O mesmo se diga do número de executantes.
A perspectiva original da obra também inclui a possibilidade de qualquer dos autos se preparar e apresentar com um número maior de actores ou de músicos. Isso poderá permitir que mais pessoas se envolvam na interpretação. Numa perspectiva pedagógica – e uma vez que os Autos das Barcas são obras com presença nos programas de estudo da língua portuguesa – também será possivel apresentar apenas algumas selecções de cenas, de acordo com os recursos e contextos de cada produção.
Fernando C. Lapa